sábado, 18 de junho de 2011

O sapo Gonzalo vai ao Rio

Por Luiz Bernardo Pericás - do Rio de Janeiro
Chutou uma lata jogada na rua e machucou o pé…
Acordara tarde e de mau humor naquele dia nublado: a cara amassada era a evidência irrefutável de horas e horas mal dormidas na noite anterior. E da ressaca fenomenal que o atingira como um soco no plexo solar.  A cabeça doía.
Che
Che posa para foto com o time do Madureira
É verdade que fora à “Cidade Maravilhosa” para descansar, tirar uns dois ou três dias de folga, quem sabe pegar uma praia. Afinal, ninguém é de ferro. Mas a gastrite e a esofagite não davam trégua. Nem o mormaço cinzento e úmido que parecia aplastar os cidadãos que iam e vinham naquela avenida, no centro da antiga capital.
Acabara de almoçar, um rãburguer gordurento no Amarelinho. Mal terminara de dar a última mordida no sanduíche e fez um sinal com a mão erguida para o maître, que assentiu com a cabeça e mandou alguém atendê-lo à mesa. A conversa com o garçom logo em seguida, a propósito do café, o incomodou tanto quanto o pedaço de carne que ficara grudado entre o dente e a gengiva.
“O senhor quer com leite?”
Con leche?! Estás loco, pibe?!”
“Então com espuminha em cima…”
O quê?! Você está me achando com cara de quê, boludo?! Dame un café negro, fuerte, amargo!!! Café de hombre de verdad, che!
Tomou dois.
Agora a queimação fazia um buraco no estômago. E no peito. Só faltava sair vapor pelos ouvidos. Ah, deixa para lá… Ele aguentava…
Acendeu um cigarro. Aspirou o fumo com vontade, e logo soltou uma baforada vagorosa. Caminhava despreocupado pela Rio Branco, passando pelos transeúntes desavisados. Gotículas de suor escorriam na fronte; o peito arfava, em rápidas contrações: já não era mais um garoto. Faltava-lhe ar. O excesso de nicotina encardia as ventosas das mãos ainda firmes, enquanto o odor acre das axilas e o hálito amargo exalado de sua boca, por sua vez, apenas completavam o estado lastimável em que se encontrava…
Sua intenção era chegar logo ao Sebo Berinjela, ali perto; lugar bom. Havia de encontrar algum clássico, quem sabe uma primeira edição encadernada, assinada pelo autor; e, de preferência, a um preço camarada. Não podia prescindir de um bom livro, e o feriado seria uma excelente oportunidade para pôr as leituras em dia.
La Ciudad Maravillosa
Ouvira dizer que em breve lá ocorreriam dois grandes eventos esportivos internacionais, o campeonato mundial de bolinhas de gude e as Olimpíadas! O responsável por cuidar de tudo seria o ministro Tapioca, amante da culinária popular nordestina e dos cartões de crédito corporativos. O senhor Tapioca, que encabeçava o Ministério dos Esportes desde o governo do ex-presidente Borbulha, iria supervisionar tudo. A imprensa andara falando, uns tempos atrás, que no Pan houve dezenas de obras superfaturadas, desvio de verbas, construções de péssima qualidade, elefantes brancos… e que muito do que fora prometido não havia sido entregue… Mas desta vez, por algum motivo misterioso, sobrenatural, mágico, Tapioca garantia que as coisas seriam diferentes. É bem verdade que também haviam comentado por aí que o partido do senhor Tapioca recebera “doações” milionárias de multinacionais que irão investir na próxima competição, que as obras estavam atrasadas, que os gastos seriam inflacionados, que já começava a haver especulação imobiliária, remoções e despejos de comunidades, desapropriações de moradores pobres sem indenizações, que depois haverá proibição de manifestações, impedimentos ao trabalho informal nas ruas, mais policiais reprimindo a população… Uma bagunça, incompetência e desorganização completas… Mas o ministro Tapioca insistia que aquelas eram apenas intrigas da oposição… Está certo…
De qualquer forma, Gonzalo já sabia que animal poderia ser o mascote da próxima competição: o bicho-preguiça. Afinal, este era o símbolo da República do Repolho!
Olhando para as ruas da velha metrópole, Gonzalo percebia que ainda faltava muito a ser feito. Muito mesmo…
No caminho, teve de desviar-se de um cadáver estendido no chão, sobre uma poça de sangue escura. As varejeiras voavam em círculo sobre o corpo inerte, enquanto, bem ao lado, dois desocupados tomavam cerveja num boteco, indiferentes. A imagem tétrica assustou o sapo argentino, que imediatamente acelerou o passo, para logo pisar num buraco de tamanho considerável e quase torcer o tornozelo. Mancando, a canela latejando, caminhou alguns metros e pulou por cima de uma rachadura. Ou melhor, de algumas rachaduras. Chegou à conclusão mais lógica naquele momento: havia mais crateras na República do Repolho do que na superfície lunar! Papéis aqui e ali, várias latas nas esquinas, bitucas de cigarros por toda parte. Uma porcaria fenomenal. As ruas e praças da República do Repolho eram todas assim.
Gonzalo lera num jornal, pouco tempo antes, que após o terremoto e tsunami no Japão, o governo do país reconstruiu estradas inteiras (que haviam sido completamente destruídas pela tragédia natural), em apenas dois ou três dias. As “reformas”, de acordo com as autoridades nipônicas (ainda que resultassem em autovias mais modernas e seguras do que qualquer similar na República do Repolho), seriam apenas provisórias. Assim que pudessem, iriam desmanchá-las e reconstruí-las, tintim por tintim, do jeito certo, com o maior esmero, sem roubar ou desviar dinheiro, usando um asfalto da melhor qualidade. Já por essas paragens… as obras demoravam o dobro do tempo para serem concluídas, custavam o triplo do preço inicial e ficavam imprestáveis seis meses após a inauguração. Viva a República do Repolho!
Do outro lado da avenida, um indivíduo roubava a fiação de cobre de um poste de luz; um comparsa, surrupiava os cabos de um sinal de trânsito. Na mesma calçada em que se encontrava nosso herói esverdeado, por sua vez, um policial arrebentava a cabeça de um indigente indefeso com um cassetete e um punhado de crianças fumava crack, sem que ninguém desse a menor pelota…
El mundo ha vivido equivocado… Nessas horas se lembrava de seu compatriota, Roberto Fontanarrosa. El mundo ha vivido equivocado. O escritor e cartunista rioplatense é que estava certo. Continuava caminhando.
Estava com saudades de sua prima, Mafalda, agora uma senhora enrugada, asmática e de cabelos brancos, que passava parte de suas tardes se aplicando na veia, por causa da diabetes, e depois, indo ao cinema, onde assistia cotidianamente às reprises de Cantinflas nas matinês e festivais de filmes antigos na capital argentina. Também sentia falta de seu melhor amigo no Chile, o Condorito! Há muito tempo não se encontravam. Ah, quanta saudade! Tinha de visitar os dois um dia desses.
Finalmente chegou ao número 185. Entrou no prédio, deslizou pela rampa em espiral e após apenas alguns passos pelo corredor, já estava no Berinjela, bem em frente (e ao lado) da Livraria Leonardo da Vinci, uma das mais tradicionais da cidade. A poeira dos livros não o intimidou, mas penetrou nas narinas sensíveis. “Cof, cof, cof…” Tossiu. Devia ser alergia. Os olhos lacrimejavam; a garganta ardia. Passou o pano em cima das pálpebras; depois o colocou sobre a boca. Escarrou.
Só então lançou um vistaço nas estantes. De fato, a oferta era grande. Em poucos minutos, carregava uma pilha de livros, trôpego, em zigue zague, tal qual um equilibrista. Deixou tudo em cima da mesa do vendedor e foi dar mais uma olhada nas prateleiras.
Até que viu um recorte de jornal na parede, e, logo acima, uma foto, que o impressionaram! Era uma nota do Globo sobre o encontro de Che Guevara com o Madureira Esporte Clube!!! Por essa ele não esperava! A fotografia tirada por Jorge William mostrava o guerrilheiro argentino com seu tradicional uniforme verde-oliva e boina preta na cabeça, segurando uma bola de futebol, entre os jogadores do time carioca. Lá estava o craque do time, o meia Farah; e também, de camisa branca, o empresário português Zé da Gama. Surrealista!
Na Argentina, Gonzalo era torcedor do Boca, e na República do Repolho, flamenguista. Gostava do vermelho e do negro, as cores do Movimento 26 de Julho, o grupo liderado por Fidel, dirigente que tanto admirava.
Não entendia como o Che havia se encontrado com o Madureira. O fato é que o tricolor suburbano fez uma “excursão internacional” de três meses e vinte dias em 1963, e entre os lugares visitados, estava Cuba. Guevara, que na adolescência fora torcedor do Rosário Central, assistiu ao último dos cinco jogos do time da Arena da Rua Conselheiro Galvão e visitou os jogadores no hotel onde estavam hospedados (os atletas ficaram inicialmente no Riviera, mas depois foram transferidos para o Habana Libre). O grande Madureira, fundado em 1914, vice-campeão da série “D” do campeonato brasileiro de 2010 e número 185 no ranking dos times do país!
No dia 12 de maio de 1963, o Madureira enfrentou, no Estádio Latinoamericano, seu primeiro adversário, o Industriales, vencendo a partida por 5 a2. Em seguida, outra goleada, desta vez por 6 a 1 contra o Municipalidad de Morrón. O maior placar foi contra o Combinado Universitário, 11 a 1 para o time carioca. Já no confronto com a Seleção de Havana, o resultado foi apenas 1 a 0. E o derradeiro jogo em Cuba, no dia 19 do mesmo mês, no Estádio Universitário, novamente contra o mesmo misto habanero, 3 a 2, um placar respeitável para os donos da casa. Afinal, a vitória do “grená, azul e amarelo” não foi tão dilatada quanto nos outros certames. Após o término do jogo, o ministro das Indústrias entrou na cancha e fez questão de apertar a mão de todos os jogadores da esquadra carioca. Pois esta foi a última partida daquele plantel a que Guevara assistiu em pessoa (mais ou menos na mesma época, o Che ainda iria acompanhar, no Estádio da Universidade de Havana, uma contenda entre a seleção nacional de Cuba e o Dínamo de Kiev, da antiga União Soviética, junto com sua esposa Aleida e do amigo Alberto Granado). No dia 27, o Madureira partiria de Havana e continuaria sua viagem para o México, El Salvador e Panamá. E lá estava agora, colada na parede, a foto clássica, envelhecida, perdida no Sebo Berinjela, para intrigar todos os clientes que passassem por lá.
Quando era garoto, em Alta Gracia, Guevara jogava futebol quase todas as tardes com amigos de sua idade. Foi até o capitão de um time do Barrio del Alto, onde vivia, no final da década de trinta. Pelao (seu apelido na época) jogava num campinho perto do Hospital de Tuberculosos da cidade. Até os doentes iam ver os jogos! Não gostava de perder, e quando isso ocorria (o que era frequente), ficava irritadíssimo e lhe vinha logo um ataque de asma. Junto com amigo Granado, fazia parte do Escolares, uma equipe local.
A partir de 1943, em Córdoba, continuaria a praticar o esporte. Jogou como goleiro, lateral direito e zagueiro, especialmente pelo Elevación. Dizem que tinha muita velocidade e garra, mas pouca técnica e habilidade com a bola. E que apesar de ocupar, em geral, posições no setor defensivo (e não ser muito alto), aparentemente era bom cabeceador.
Mesmo quando passou a ser chamado de Fuser e a praticar o rugbi, nunca abandonou o futebol. Entre 1945 e 1946, iria jogar em Bower, um povoado entre Córdoba e Alta Gracia, sempre como defensor.
Em sua primeira grande viagem pela América do Sul com o colega Granado, jogaria em diversas ocasiões: na Salitrera de Toco, no Chile, junto com trabalhadores de construção de estradas; em Machu Picchu, com o gerente e os empregados do hotel onde estavam hospedados; e com pacientes de um hospital em Lima e do leprosario de San Pablo.
Em Letícia, Colômbia, se tornara, com Granado, “treinador” do Independiente Sporting, time local, que perderia a partida inicial. Por isso, os dois amigos decidiriam integrar a equipe, que ganhou dois jogos eliminatórios e empatou outro, mas acabou perdendo a final por pênaltis (Guevara, na ocasião, era o arqueiro).
Em Bogotá, participara de partidas de várzea com operários e depois assistira a uma disputa entre o Club Millonarios (equipe em que jogavam vários argentinos) e o Real Madrid. Chegou a conhecer pessoalmente a Di Stéfano, com quem conversou bastante.
Já na Venezuela, em julho de 1952, iria à inaguração do Estádio da Cidade Universitária de Caracas, onde novamente Millionarios e Real Madrid se enfrentariam. Naquele dia, quase saiu no braço com outro torcedor por causa do jogo. Os amigos tiveram de tirá-lo de lá para protegê-lo, já que Guevara era menor e mais franzino que o hincha espanhol, bem mais robusto que o jovem viajante…
Em Cuba, depois do triunfo da revolução, o Che praticou com maior frequência outros esportes, como beisebol, xadrez, tiro e até golfe. É bem verdade que chegou a jogar algumas poucas partidas de futebol para relaxar, mas nenhuma que tivesse grande destaque. Mesmo assim, quando o glorioso Madureira foi para a ilha, fez questão de conhecer o time pessoalmente, e de assistir a um de seus jogos.
Gonzalo olhou para a foto amarelada do comandante diante de si e abriu um leve sorriso. Aquele era um homem íntegro como poucos, que seria capaz de dar a vida por seus ideais. Tão diferente dos burocratas e picaretas que mandavam na República do Repolho…
Pagou pelos livros e foi embora sem pressa, carregando duas sacolas cheias nas mãos. Suas compras estavam pesadas… Subiu a rampa estonteante e saiu na longa e barulhenta avenida. Respirou o ar poluído, como sempre. E mais uma vez voltou a caminhar no meio da multidão.
Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do TexasÉ autor, pela Boitempode Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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